segunda-feira, 22 de junho de 2009

Questões Étnico-Raciais

Entrevista com os Alunos Negros na Escola
Auto-Imagem, auto-estima e identidade dos Alunos Negros na Escola Diestchi

Comecei minhas entrevistas com uma introdução sobre o trabalho. Contei aos alunos que eu estava fazendo um trabalho da escola onde estudo, e que para isso era necessária a ajuda deles. Disse-lhes que era um trabalho sobre a História do Brasil.
Para dar início a entrevista propriamente dita, fiz essas cinco perguntas, na ordem:
1. De onde você veio?
2. Estudou em outra escola antes de vir morar aqui na Rondinha?
3. Como era lá nessa outra escola?
4. E aqui na escola Dietschi, como você se sente?
5. Como você se sente sendo aluno (a) negro (a) nessa escola?

Passo a registrar aqui as respostas dos três alunos a quem entrevistei:
A aluna K tem dez anos, é aluna do terceiro ano do ensino fundamental de nove anos, sua família aqui em Rondinha resume-se a mãe e uma irmã de dezessete anos que tem um filho de dois anos.
Respondeu a pergunta um me dizendo que veio de Caxias do Sul, nascida lá mesmo. Agora está morando aqui na Praia Azul (balneário próximo da Rondinha, onde se localiza a escola), e veio com 9 anos.
K contou que a mãe trabalhava cuidando de uma senhora idosa, e que essa havia falecido. Solidarizei-me com o fato e perguntei como ficaria o financeiro da família agora. K me diz que só a mãe trabalha, mas que ela e a irmã ajudam no serviço em casa, para que a mãe não trabalhe sozinha.

Passamos a pergunta 2 e K responde sim. Deu o nome da escola e sua localização. Conta que gostava de estudar na outra escola, que era muito legal, bem divertido. Tinha muitos colegas e brincavam de pega-pega, esconde-esconde. Mas lá não tinha parquinho (pracinha), como tem aqui, nem sala de computadores.
Perguntei sobre o lugar que morava, e também se brincava com as crianças da sua rua. Aqui disse que quase não tinha criança na sua rua, por isso se juntava com outras crianças em outras ruas do bairro para brincar.

Na pergunta 3, responde que a professora era braba! E que gostava de fazer contas de divisão e multiplicação, gostava mais de matemática. Também lia muitas histórias, porque gosto de ler, disse.

Então, chegamos à pergunta 4:
K diz que adora a escola Dietschi. Os colegas são legais, a professora é legal e muito querida, pois explica as tarefas, conversa bastante. Acrescenta que gosta das professoras e adora a aula de dança, me conta aqui que estão ensaiando uma apresentação. Diz que não gosta do momento da saída, porque os colegas vão embora e fica triste, mas gosta quando chega à aula, no início é muito bom, estão todos bem alegres.

Então para passar a pergunta 5, especificamente sobre sua cor, fiz um questionamento anterior. Pedi que me contasse o que sabia, o que já tinha ouvido falar sobre os primeiros moradores do Brasil. K me diz que começou o Brasil com os índios, e depois eles foram mortos.
Aqui lhe contei que sempre ouvia minha mãe dizer que a bisavó dela era índia, e que seu bisavô a tinha trazido da mata para morar com ele.
Então perguntei o que sabia sobre a história dos negros no Brasil. K me diz que os brancos pegaram os negros feitos escravos, e eles faziam todo o serviço dos brancos. Então conversamos sobre as novelas, disse que conhecia a escrava Isaura e achou a história horrorosa dos negros ali retratada.
Perguntei o que sua mãe lhe contava quando era pequena, diz que ouvia a mãe contar que quando era pequena pegou piolho, e a mãe disse que tinha que limpar sua cabeça, pois senão os colegas não iam querer brincar com ela. E também contava histórias dos negros escravos e dos bichinhos. E que os escravos tinham que trabalhar e os brancos só batiam, e até morreram de tanto apanhar!

Então, no meio dessa história toda, fiz uma colocação que vem me incomodando a tempos: disse para K que os negros foram muito corajosos, pois com toda sua história de escravidão, de ser arrancado da sua terra, de sofrer horrores ainda tiveram muita coragem. K completa: eles fugiram! Isso mesmo, fugiram, lutaram contra essa situação tão adversa. E se multiplicaram aqui no território brasileiro. Olha só o quanto se vê de população afro-brasileira: muitos negros, muita gente, espalhada pelo Brasil inteiro. E completei: E os índios, K quantos a gente vê por aí? Muito poucos me respondeu! Isso mesmo. O povo indígena foi dizimado, e não lutou tanto quanto os negros pela sua vida, pela continuidade da sua gente. Isso é perceptível pela população que vemos hoje, enquanto que os afro-descendentes estão em toda parte!

Aqui perguntei qual era a sua cor. K me responde enfaticamente: eu sou preta! Como minha mãe, meu pai e meus avós.

Então procedi a pergunta 5: Como você se sente sendo negra aqui na escola?
K me responde: __ Me sinto muito bem. Sou preta e vou morrer preta.
Como estávamos bem à vontade, perguntei se tivesse a oportunidade de trocar da cor preta para a branca, faria essa troca? K me respondeu com ênfase: __Não ia querer ser branca. É melhor na minha cor.

Ainda lhe questionei se já sofreu alguma discriminação, ou preconceito com relação a sua cor na escola, diz que não, nenhuma vez.

K apresentou-se bem à vontade com sua cor em toda a nossa entrevista. Somente ao final senti certo conformismo em sua colocação “__sou preta e vou morrer preta!”. Em nenhum outro momento mostrou preocupação maior, discriminatória, com relação as suas origens afro-descendentes.

Depois chamei a aluna M de oito anos, aluna do terceiro ano do ensino fundamental de nove anos.
Procedi ao mesmo questionamento, com a mesma introdução. Senti certo retraimento da sua parte logo de início, quando falei que o assunto era a história do Brasil e suas origens raciais.

Na primeira pergunta me respondeu que sempre morou aqui na Rondinha.
Respondendo a pergunta dois, me conta que estudou na escola vizinha, bem próxima da Rondinha, em Balneário Atlântico, na pré-escola.

No questionamento da pergunta três sua resposta se resume a estética, o físico: “a escola era amarela, tinha cerca ao redor, tinha um monte de rodas (pneus) que a gente brincava em cima e pulava dentro e escorregador. Lembra que “tinha que escalar a escada para escorregar e as classes (mesas) eram de madeira, baixinhas. Fala que tinha três professoras e que gostava de brincar de telefone sem fio, de esconder a boneca na caixa, dentro da casinha e os colegas procuravam.

Para a pergunta quatro suas respostas foram dirigidas aos momentos do recreio: gosto de brincar de perna-de-pau, de pular corda e pula-pula com os colegas. E também brincar de piquenique. Perguntei então, do que não gostava na escola? Ao que me respondeu:__não gosto de brigar com os colegas. Aqui tentei entrar numa conversa sobre porque brigaria com os colegas, me respondeu que não brigava.

Então, sentindo toda a sua tensão desde o começo da entrevista, fiz-lhe a pergunta:__Conheces alguma coisa da história do Brasil? Respondeu enfaticamente:__não! Perguntei-lhe se não lembrava o que conversávamos no ano passado, quando falamos muito dos moradores antigos do Brasil. Lembrou então que os índios foram os primeiros moradores, mas eles tiveram que ir embora porque os portugueses queriam mandar em tudo.

Nesse momento, adotou uma postura mais dispersa ainda que no início da nossa conversa: começou a me contar que conhecia uma escola só de índios em Porto Alegre, que essa escola era lá na rua da Brenda, do outro lado. Esses alunos índios, dizia M. usavam uma pena na cabeça e roupas vermelhas e marrons.

Como percebi desde o início da nossa conversa o quanto estava arredia, pois demonstrou o tempo todo que estava impaciente, fui diretamente à pergunta: __O que sabes dos negros, trazidos da África para o Brasil? Nesse momento enrijeceu na cadeira e virou o rosto para o lado oposto ao meu, postura essa que permaneceu até o final da entrevista. Dizendo que não sabia nada. Perguntei o que sua mãe lhe contava. M. respondeu que a mãe só lhe disse que os negros da África ficavam amarrados porque os brancos queriam que eles virassem escravos. Emenda que os negros fugiram porque apanhavam.

Aproveitei esse momento e perguntei sua cor. Não me respondeu. Então, como eu conheço toda sua família lhe disse: __Toda a sua família do lado da sua mãe é negra, do lado do seu pai são brancos, e tu qual é a tua cor?
__Eu sou preta. Essa resposta saiu muito ríspida, áspera.

E aqui na escola, como se sente sendo aluna preta? Perguntei. M não me responde diretamente a essa pergunta, mas diz que é bom vir nessa escola, pois tem os amigos para brincar.
Novamente lhe pergunto se tem algo de ruim aqui na escola.
M responde enfática, dizendo: __ O que é ruim é que às vezes a gente é chamada de preta! Novamente lhe perguntei que cor tinha sua pele. Aqui nesse momento dá uma risada e me olha meio desconfiada e diz: __Preta.
Fiz essa colocação: __Bom, se tua cor é preta e teus colegas te chamam de preta, porque é ruim? Ai então me conta uma história da outra escola, do tempo do prezinho (Pré-escola) em que a chamaram de preta e não gostava. Chegava em casa e contava para a mãe. Sua mãe pegou a bicicleta, ela própria foi pedalando a sua e rumaram para a escola. A mãe foi falar com a professora e M não participou da conversa. Não sabe o que conversaram, mas a mãe lhe disse que se a chamassem novamente de preta, contasse a ela. M diz que não aconteceu mais.

Como fiz com a K, comentei também com M sobre a coragem dos negros em lutarem por sua liberdade, fugindo para os Quilombos, procurando um lugar para viverem livres junto com suas famílias. Conquistando assim, com o passar do tempo e da história, sua liberdade. Novamente fiz um comparativo com os índios, relatando que aparenta não terem sido tão corajosos assim, pois não perpetuaram muitos da sua raça ao longo dos anos. Tanto que não conhecemos muitos índios por aqui, mas dos negros vemos muitos, em toda parte!

Levei M para sua sala e fui buscar E, que tem sete anos e estuda no segundo ano do ensino fundamental.
E é um menino muito difícil de conversar, dá muitas voltas em todas as respostas e fantasia muito. Não sei se me falou a verdade em seu relato inicial, pois contou muitas estórias que penso serem inverdades. Mas como não o conheço muito bem ainda, não posso afirmar se é real ou não o que me contou. Igualmente como os colegas anteriores, vou registrar nossa conversa.

Muito risonho e falante, iniciamos nossa conversa já no corredor, pois E é um aluno muito rápido nas conversas e na perspicácia. Logo na saída da sala queria saber o que conversaríamos, então fiz minhas considerações iniciais ali no corredor, enquanto nos dirigíamos para a sala no outro pavilhão.

Na pergunta um onde morava antes de vir para Rondinha, E responde que morava em Rio Grande, que nasceu lá. Mas que as coisas por lá eram muitos ruins. Então veio morar aqui.

E me conta que estudou em três escolas antes de vir para a Dietschi. Primeiro foi para a Santos Salvador, no balneário próximo daqui; depois foi para a escola Bem-Me-Quer, na sede do município e de lá foi para a Raimundo. Termina dizendo que agora está aqui.

Perguntei-lhe porque mudou tanto de escola, se morava bem pertinho da Dietschi. E me conta que aconteciam muitos acidentes e por isso tinha que ficar pouco tempo nas escolas. Perguntei que acidentes, E me responde: brigas. Eu era pequeno e brigava, depois fui crescendo e continuava brigando. E contou que brigava também com seus amigos.

Falando muito rapidamente foi me contando muitas dessas brigas, então tive que ir direcionado para os meus questionamentos. Perguntei o que gostava, o que tinha de bom nas escolas que passou. E responde que gostava de brincar com os brinquedos e cuidava para os colegas não os destruírem. Rapidamente passa a contar que tinha amigas e mais colegas. Continuando suas lembranças, fala da professora Paula que era muito boa, pois não gritava com ele quando incomodava. E que por isso ficava na hora do recreio fazendo as tarefas. A conversa foi longe, novamente cortei o assunto e direcionei a nova pergunta.

Questionado sobre o que conhecia da história do Brasil e seus moradores, E respondeu que não sabe direito. Perguntei se lembrava quando fomos fazer o painel dos recortes na biblioteca. E me diz então que lembra que fomos conversar e recortar sobre os africanos, os índios e não se lembra de recortes sobre os portugueses. Perguntei o que lembrava mais. Disse que não lembrava muito, mas numa atitude de negação, pois demonstrava certo ar matreiro enquanto dizia, querendo esconder o que já sabia ao não verbalizar esse conhecimento.

Nosso clima estava bem amistoso, pois já nos conhecíamos bem, então fui diretamente à pergunta: __E qual a cor da tua pele? Ao que me respondeu prontamente, num largo sorriso: __Moreno. Perguntei de novo: o que é moreno? __A minha cor. Encostei minha mão na dele, arregacei minha manga e perguntei: __ E qual a minha cor? __Professora tu é chocolate branco! E eu sou chocolate preto! Concluiu E.

Depois dessa resposta caímos na gargalhada. Então E começou a me contar que uma amiga da sua mãe havia dito que o E era afro-brasileiro e a mãe respondeu que não. Teci alguns comentários sobre sua cor mostrar essa afro-descendência, e a amiga da sua mãe estava certa ao dizer isso.

E passa a relatar que todo mundo dizia que ele havia “nascido no forno”, mas E não ligava, porque sabia ser brincadeira pela sua cor. Mas que sua mãe ficava brava com isso. Perguntei quem era todo mundo, E me diz que são os amigos da mãe, os vizinhos próximos de sua casa, os seus amigos.

Aproveitei e lhe perguntei como se sentia sendo aluno negro aqui na escola Dietschi. E me diz que se sente bem, mas às vezes não. Pergunto por que não, E responde que do lado da sua casa o chamam de “neguinho”. Insisto com ele na pergunta: e aqui na escola E, como se sente? E fala que se sente bem e alegre e que fica chateado quando um único colega (D) o chama de “neguinho” (pelo jeito que o faz), outros colegas podem até chamá-lo assim, mas ele não liga, pois chamam diferente do jeito que D o chama!

Como nas entrevistas anteriores contei a E minha descendência indígena, com a história da bisava índia, comentei também sobre a luta dos negros em serem livres, batalhando por igualdade junto aos brancos. Juntos concluímos que os negros são tão importantes quanto os brancos, o que é necessário é que cada um respeite o outro, do jeito que o outro é.

Depois das entrevistas com os alunos, me senti mais aliviada com o tema etnia. Estive um tanto apreensiva antes da atividade, mas durante o tempo em que fomos conversando, pude perceber o tanto que K é feliz em ser negra, concordando plenamente que tem suas origens étnicas e raciais negras e que não se sente discriminada em sua cor, nem percebe essa discriminação na sua vida.

K demonstrou ao longo da nossa entrevista que tem boa auto-estima e reconhece sua identidade afro-brasileira com muita tranqüilidade, entendendo que somos parte de uma família, que temos as características físicas herdadas de nossos parentes. E que isso faz diferença na sua vida, pois é feliz com a diferença que percebe entre ser de cor preta e outras pessoas serem brancas, índias, européias, enfim, de outra etnia, mas que isso não lhe diminui em nada, pois todos somos diferentes.

M rejeita sua identidade e possui baixa auto-estima, pois sua postura durante toda a nossa conversa foi de negação da sua cor. Inclusive negou que conhecia uma pequena parte, um pedaço da história da vinda do povo africano ao Brasil, pois foi minha aluna no ano passado e esse é um tema que procuro trabalhar durante todo o ano, em muitas oportunidades.

Já a postura de E foi de total descontração frente ao assunto da nossa entrevista. Embora tenha reclamado de ser chamado de “neguinho” de um jeito diferente pelo colega D, não mostra nenhuma restrição ao termo ser proferido pelos outros colegas, incomodando-o especificamente com esse colega. Percebo aqui certa animosidade entre os dois alunos. E demonstrou ao longo da nossa conversa que a mãe é quem tem mais rejeição a sua cor, visto ser ela branca, seus dois filhos anteriores também brancos, de um casamento com um homem branco. E nasceu de um novo relacionamento, então com um pai afro e que não vive com sua mãe. Sofre mais discriminações dentro de casa, pela sua cor, sendo e sentindo-se comparado com os irmãos brancos diariamente!

Penso que E tem baixa auto-estima que ainda pode ser melhor trabalhada com relação a sua descendência afro, mas que com muito jeito, reconheço, a escola pode vir a desenvolver uma melhora sensível nesse sentido, tratando a E, K, M e todos os outros diferentes (afinal, não somos iguais em nossas características físicas, na nossa aparência, nas posses financeiras, nas preferências, afros, índios, deficientes, especiais, ) de um jeito que possamos levar a todos os alunos a sentirem-se bem na escola, na cidade, na sua vida pessoal, familiar e social. Tendo as mesmas oportunidades e possibilidades de garantia de educação democrática.

Ao finalizar essa primeira parte do trabalho posso dizer como Marilene Paré que: “cada entrevista era única”, pois cada um dos alunos mostrou, falou da sua origem familiar, racial, contando suas lembranças, revivendo fatos passados, que os tornaram o que são agora, nesse tempo presente.

Essa entrevista individual seria um bom exercício a ser desenvolvido com todos os alunos, independente de sua cor, da sua diferença, pois nos mostraria na medida exata como estão todos os nossos alunos na sua auto-imagem, o grau da sua auto-estima e a sua identidade étnica. Poderíamos assim, auxiliar em casos específicos, para, como nos diz Marilene Paré “fazer brilhar o diamante interno da própria auto-imagem e auto-estima do aluno que por mim passar”e também a minha própria como professor.



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